Havia um rapaz... (parte II)
"(...)Aquele instante em que o vi apenas de relance foi o suficiente para saber. Acelerando o passo e com o coração quase a saltar-me pela boca, virei a esquina e encostei-me a uma parede, escondida do mundo dentro de mim mesma, tentando normalizar a respiração e organizar as ideias.
Teria visto bem? Era preciso voltar para trás e certificar-me, se bem que no fundo não me restasse nenhuma dúvida. A muito custo e com alguma relutância, lá consegui descolar os pés do chão e as costas da parede suja e áspera. Voltei a virar a esquina e atravessei a rua. Lá estava ele, na entrada de um dos vários prédios que havia do outro lado da rua, encostado às caixas do correio. Entrei numa loja mesmo em frente e fingi-me interessada nos artigos em exposição. Observava-o atentamente. Não devia ser muito mais alto do que eu e nem sequer era muito bonito. Devia ser mais ou menos da minha idade. Mesmo ao longe consegui absorver os mais ínfimos detalhes. Os olhos eram castanhos, castanho claros, como mais tarde iria constatar, tal como o cabelo despenteado que fazia sempre com que parecesse que estava a levar com vento na cara, mesmo que não corresse a menor brisa, como era o caso, e que lhe conferia aquele ar descontraído de quem não se preocupa com mais nada a não ser estrelas e luas. As sobrancelhas não eram propriamente bonitas, eram grossas e escuras, mas podia dizer-se que eram a moldura perfeita para uns olhos sonhadores e que desejavam o mundo como pareciam ser os dele. As maçãs do rosto eram ligeiramente salientes, o que conferia alguma seriedade ao conjunto. O nariz era direito, nem pequeno nem grande, mesmo como devia ser e a boca, a boca era também ela pequena e os lábios eram carnudos e vermelhos. No fundo era um rosto de rapazinho num corpo de homem, ou seria o contrário? Senti que perdia a força nas pernas.
De súbito, a porta do prédio abriu-se e saiu de lá um rapaz que devia ser amigo daquele que me interessava pois cumprimentaram-se com um aperto de mão e pude reparar que, ao sorrir, lhe nasciam duas covinhas na cara que lhe emprestavam um ar de criança ao sol. O amigo dele, esse sim era realmente bonito, mas não tinha o mesmo ar de mistério nem me provocou a mesma sensação de vazio e simultaneamente de medo e euforia.
Não podia ter-me apaixonado assim sem mais nem menos, não era normal nem estava propriamente dentro dos meus planos mas desconfiava que era isso mesmo o que me acontecera, para o meu grande azar.
Não conseguia compreender. Nunca tinha visto aquele rosto antes, nem parecido, nem sequer num sonho. Como seria possível ter-me afectado de tal forma? Tinha de ser mesmo o meu destino, caso contrário não teria olhado duas vezes para aquele rapaz, tão normal e ao mesmo tempo tão fora do vulgar. Teria sido eu a única a reparar nisso? Ou será que ele possuía o terrível dom ou maldição de perturbar quem quer olhasse os seus olhos de fugitivo? A primeira hipótese parecia-me mais plausível; por ora teria de me contentar em considerar que de facto se tratava do meu destino, apesar de nunca ter acreditado em tal coisa. E se era o meu destino que estava em jogo o melhor era não ficar para ali especada pois entretanto os dois rapazes já iam quase no fim da rua, conversando calmamente.
Não fui capaz de os seguir. Faltava-me a coragem. As minhas pernas não obedeciam. O meu cérebro nem sequer fazia questão de as mandar mexerem-se. Arrependi-me. Saí disparada da loja e corri atrás deles sem saber sequer o que faria a seguir, mas quando virei de novo a esquina, já não os vi. Tinha demorado demasiado tempo. Tinha sido demasiado indecisa. Não conseguia perceber o que me dera. Mas depois de pensar um pouco concluí que até tinha sido melhor assim. Também, mesmo que os tivesse alcançado de que adiantava? Chegava ao pé dele e pedia-o em casamento, não? Ridículo. Uma perda de tempo, era o que tinha sido aquela tarde, bem que podia ter ficado em casa a estudar que era o que realmente precisava. Decidi fazer isso mesmo: ir para casa.
(Nessa noite sonhou com o rapaz.
Ela atravessava a passadeira de uma rua desconhecida e tinha um vestido curto, de Verão, amarelo. Ele apoiava o ombro esquerdo nas caixas do correio de um prédio amarelo e tinha na mão direita um objecto da mesma cor. Quando ela passou por ele não o viu, mas ele chamou-a. Começou a caminhar na sua direcção mas mal se aproximou ele fugiu, deixando cair o tal objecto. Quando se baixou para o apanhar sentiu o coração a bater mais depressa, como se estivesse prestes a descobrir algum segredo precioso, mas antes de conseguir ver de que se tratava, acordou.)
Duas semanas mais tarde voltei a vê-lo.
Como era Sábado e não me apetecia ficar a estudar decidi sair de casa para tomar café. Ia sentar-me na mesa do costume, na esplanada em frente ao meu prédio, quando vi que na mesa ao lado dos dois velhotes que, como sempre, jogavam à bisca, estavam sentados o rapaz e o amigo. Afinal o raio do mundo era mesmo pequeno! Estive quase, vai-não-vai, para meter conversa, mas vi um bloco de papel em cima da mesa deles e fiquei a pensar onde é que já o teria visto. Entretanto eles começaram a levantar-se e mesmo quando eu ia para lhes dizer que não se esquecessem do bloco, alguém me tapou os olhos por trás. Era uma colega da turma que aproveitou para me perguntar se não lhe podia dar umas explicações de inglês. Entretanto já os dois rapazes tinham desaparecido outra vez, para grande irritação minha. Depois de ter despachado a colega, dizendo estar muito ocupada mas prometendo as explicações para mais tarde, sentei-me na mesa de onde os dois rapazes tinham saído e pedi um café e um copo de água. Respirei fundo para ganhar coragem, antes de pegar no bloco esquecido. Era um bloco de desenho A4, a capa de um amarelo pálido já bastante gasta nos cantos. Pensei que de facto já tinha visto aquele bloco nalgum sítio mas não me conseguia lembrar onde, provavelmente alguma das minhas amigas tinha um igual.
Abri-o com mil cuidados, como se pudesse desfazer-se em pó a qualquer momento. Alternados, poemas e desenhos, numa ordem um pouco caótica, olhavam para mim. Havia desenhos coloridos e tristes, outros escuros mas enérgicos e todos eles me faziam pensar em lugares distantes que não existem a não ser na imaginação de cada um. Os poemas, escritos a lápis ou a tinta azul ou preta, uns escritos com calma, outros a medo, bastante riscados, outros ainda rabiscados à pressa, como se quem os escrevera tivesse medo de esquecer palavras preciosas. A letra era francamente feia mas gritava-me que lesse, porque tudo aquilo, os poemas, os desenhos, emanava algo que eu percebia ser dele. E porque eram as palavras dele que me gritavam, li tudo sem sequer parar para respirar. Quando terminei, as minhas mãos tremiam, os meus olhos estavam enevoados, e a minha cabeça latejava de dor e confusão.
Paguei a correr, sem ao menos ter bebido o café ou sequer ter tocado na água, se bem que naquele momento tivesse a boca bem seca, e voei a trancar-me no quarto.
Como seria possível que aqueles poemas meio toscos, que pertenciam a um puto qualquer que teria pouco mais de dezoito anos, dissessem tudo aquilo que eu tinha sentido a minha vida inteira, a solidão, a espera, o desânimo, o tédio e até mesmo o desespero, provavelmente até nas mesmas palavras que eu teria escolhido se fosse poetisa ou um protótipo disso ou algo parecido.
Depois descobri um desenho, ou melhor, um esboço inacabado, pelo que pude supor, que me deixou angustiada. Estava na última página utilizada do caderno e parecia ser uma rapariga, mas os contornos, as feições, eram tão indefinidas que era quase irreal, mas ao mesmo tempo os traços eram tão decididos que se tornava impossível duvidar que existisse. Era o único desenho de uma pessoa naquele caderno inteiro. Todos os outros mostravam lugares, objectos, animais, mas pessoas nunca. Só aquele. Tive tantos ciúmes que me apeteceu rasgar a folha.
De repente, senti o coração apertar-se-me e ficar pequenino quando percebi que aquele rapaz era inatingível, que ele vivia numa dimensão completamente diversa da minha. Eu sempre soube que vivia do outro lado do espelho, mas nunca tive tanta certeza como naquele dia.
June @ 01-04-2006 0:00:00